A Hijrah Profética: uma travessia rumo à libertação e ao renascimento civilizacional

A Hijrah (migração) do Profeta ﷺ não foi meramente uma mudança geográfica de Meca para Medina, nem tampouco um evento passageiro. Foi, na verdade, uma ponte para uma transformação crucial na trajetória da humanidade, e uma encarnação viva de um grandioso projeto corânico que transcende os limites do espaço e do tempo.

O Alcorão Sagrado — livro de orientação e legislação — não se contentou em mencionar a Hijrah como um simples fato histórico. Pelo contrário, ele redefiniu seu significado e profundidade, convertendo-a em um conceito corânico abrangente que vai além das dimensões temporais e geográficas.

É isso o que distingue a Hijrah de todos os outros acontecimentos da Sīrah (biografia profética): nenhum outro evento da vida do Profeta ﷺ recebeu tanta ênfase no Alcorão, sendo reiterado e fundamentado como ocorreu com a Hijrah.

As referências à migração, aos migrantes (muhājirūn), ao mérito de sua escolha, às razões e às circunstâncias da migração se repetem em dezenas de versículos — o que constitui uma prova clara da centralidade e importância desse acontecimento como um modelo completo de mudança: mudança social, política, espiritual e moral.

Neste artigo, abordaremos a Hijrah como um projeto de libertação e um mecanismo de seleção divina da Ummah, conectando-a à tradição do istifā’ (escolha) divina nas missões anteriores. Exploraremos também o método profético único na luta contra a injustiça e as trevas, e como o Alcorão Sagrado tratou esse evento crucial com sua dimensão total e abrangente.

A Hijrah: Da identidade forçada à identidade missionária

  1. A Hijrah no Alcorão: Dimensões espirituais, sociais e civilizacionais

O Alcorão Sagrado não narra o episódio da Hijrah (migração do Profeta ﷺ de Meca para Medina) como um mero acontecimento histórico isolado. Em vez disso, Ele o insere profundamente na consciência da Ummah (comunidade islâmica), destacando suas dimensões espirituais, sociais e civilizacionais. A repetição insistente do conceito de Hijrah, a distinção dos muhājirūn (migrantes) e a exposição de suas recompensas demonstram que a migração não é apenas um ato individual ou circunstancial. É, antes, parte integrante da formação da identidade islâmica, a base da construção da nova sociedade e a centelha que acende a civilização.

Dimensão espiritual: Sacrifício e lealdade absoluta

O Alcorão enaltece o ato da Hijrah como uma prova clara da veracidade da fé, da força da certeza e da renúncia total por amor a Allah. Trata-se de romper os laços com a terra natal, com os bens e até com os parentes, quando tudo isso entra em conflito com a ordem divina. Os versículos descrevem os migrantes com atributos elevados e vinculam a migração à fé, à luta no caminho de Allah e à confiança plena n’Ele:
“Aqueles que creram, migraram e combateram pela causa de Deus poderão esperar de Deus a misericórdia, porque Deusé Indulgente, Misericordiosíssimo.”
(Surah Al-Baqarah, 2:218 – tradução de Helmi Nasr)

Este versículo une fé, migração e jihād como pilares fundamentais para alcançar a misericórdia divina.

“Mas quem migrar pela causa de Deus, achará, na terra, amplos e espaçosos refúgios.”
(Surah An-Nisā’, 4:100)

O Alcorão deixa claro que a migração não é um ato de fuga, mas sim uma busca por expansão, empoderamento e desafio aos opressores — refletindo confiança absoluta na promessa de Allah.

Há também advertência severa àqueles que deixaram de migrar mesmo tendo capacidade para isso, sendo descritos como injustos consigo mesmos:
“Aqueles a quem os anjos arrancarem a vida, em estado de iniqüidade, dizendo: Em que condições estáveis? Dirão: Estávamos subjulgados, na terra (de Makka). Dir-lhes-ão os anjos: Acaso, a terra de Deus não era bastante ampla para quemigrásseis? Tais pessoas terão o inferno por morada. Que péssimo destino!’”
(Surah An-Nisā’, 4:97)

Essa repreensão prova que a Hijrah era uma obrigação de fé — uma medida do grau de submissão à vontade divina e da recusa em aceitar a humilhação ou se submeter ao falso.

Dimensão social: fundar uma nova sociedade baseada em valores além do parentesco..

O Alcorão utilizou a hijra (emigração) como uma ferramenta para desmontar o patriarcado tribal pré-islâmico e formar uma nova sociedade islâmica baseada no vínculo da fé em vez do vínculo de sangue e linhagem. Os emigrantes (muhajirun) e os auxiliares (ansar) tornaram-se um modelo de fraternidade e solidariedade social sem precedentes:
“Quanto aos fiéis que migraram e combateram pela causa de Deus, assim como aqueles que os apararam e os secundaram- estes são os verdadeiros fiéis – obterão indulgência e magnífico sustento.” [Al-Anfal: 74]

Este versículo não apenas elogia os emigrantes, mas os associa aos auxiliares, delineando os contornos de uma sociedade misericordiosa construída sobre a lealdade da fé.

Os versículos indicam o novo vínculo que substituiu o fanatismo tribal:
“Os fiéis que migraram e sacrificaram seus bens e pessoas pela causa de Deus, assim como aqueles que os ampararam eos secundaram, são protetores uns aos outros.” [Al-Anfal: 72].

Essa aliança mútua baseada na fé foi o fundamento da construção do Estado e da sociedade..

Dimensão civilizacional: rumo à construção e ao empoderamento

A hijra não foi o fim do sofrimento, mas o início de um projeto civilizacional abrangente que inclui o estabelecimento de um Estado, a construção de instituições e a disseminação da justiça. O Alcorão conecta a hijra com a vitória, o empoderamento e a honra, mostrando que ela não é apenas uma fuga, mas um ponto de partida para a edificação de uma civilização:
“(E também corresponde uma parte) aos pobres migrantes (maquenses), que foram expatriados e despojados dos seus bens, que procuram a graça de Deus e a Sua complacência, e secundam Deus e Seu Mensageiro; estes são os verazes.
Surah Al-Hashr in Portuguese.” [Al-Hashr: 8]

Este versículo descreve o sacrifício dos emigrantes, mas está inserido no contexto da surata Al-Hashr, que trata de empoderamento e conquista, conectando o sacrifício da hijra com o início do projeto de uma nação.

Conceitos como “amplitude (sa‘a)”, “superação (murāghama)”, “empoderamento (tamkīn)”, e “dignidade (‘izza)”

Esses conceitos, mencionados no contexto da hijra (emigração), confirmam que a transformação civilizacional é um resultado direto da decisão de emigrar e sacrificar-se por Allah.

Com esses significados, torna-se claro que o Alcorão não mencionou a hijra apenas de passagem, mas a estabeleceu como um eixo central na construção da visão islâmica da vida, evidenciando sua importância na mudança espiritual, social e civilizacional.

  1. A escolha divina: da etnicidade ao universalismo da mensagem

As mensagens anteriores, embora trouxessem a luz da orientação, tinham um caráter étnico ou tribal. A eleição divina estava vinculada a povos específicos, como os filhos de Israel, que foram incumbidos de uma mensagem particular como nação escolhida.

O Islã, no entanto, veio inverter essa equação por completo. A escolha divina no Islã tornou-se uma escolha universal da mensagem, não restrita a uma etnia, raça ou linhagem. É a escolha de qualquer pessoa que carregue o projeto dos valores islâmicos supremos: o monoteísmo puro, a justiça abrangente e a liberdade enraizada. Essa nação não é “melhor” por pertencer a determinada linhagem, mas por ser uma comunidade ativa, como disse Allah:
“Sois a melhor nação que surgiu na humanidade, porque recomendais o bem, proibis o ilícito e credes em Deus.” [Al-Imran: 110]

Sua excelência se manifesta no compromisso real com a justiça, o apoio aos oprimidos e a exaltação da palavra da verdade.

Da identidade tribal restrita para a identidade universal da mensagem..

  1. A hijra para Medina: fundação da sociedade civil moderna

A hijra para Medina foi uma declaração explícita de ruptura com o fanatismo tribal pré-islâmico e a construção de uma nova sociedade civil. Essa sociedade não se baseava em dominação ou filiações estreitas, mas em valores fundamentais como:

  • Liberdade e cidadania igualitária: onde todos passaram a ter direitos e deveres equitativos, independentemente de sua tribo ou posição social anterior.
  • Liberdade religiosa: um princípio sem precedentes na época, pois a Constituição de Medina garantiu a liberdade de crença e prática religiosa a todos os habitantes da cidade, muçulmanos ou não.

Essa transformação evidencia a profunda sabedoria de o Islã não se apoiar na tribalidade à qual o Profeta Muhammad ﷺ pertencia. Pelo contrário, o Islã travou um conflito essencial contra essa tribalidade, vencendo em favor da lealdade aos crentes como um corpo único, em vez da lealdade tribal restrita.

  1. Hijra: força para libertar-se do habitual e da zona de conforto

A hijra profética representa um símbolo eterno da capacidade de romper com o habitual e libertar-se das correntes das filiações estreitas – sejam tribais ou familiares – e migrar corajosamente para a construção de uma sociedade civil baseada na lealdade à fé e aos valores humanos supremos.

Essa capacidade de emigrar não é apenas uma mudança de local, mas uma revolução completa de consciência e de estilo de vida político e social. Ela significa:

  • Libertação das correntes do fanatismo e da ignorância: que acorrentavam as sociedades e impediam seu progresso.
  • Abertura de novos horizontes de vida: em uma sociedade fundada em valores humanos, justiça e cidadania igualitária.
  • Preparação para a construção da “Nação da Mensagem”: que combina unidade de crença com liberdade de crenças, dentro de um quadro de justiça e cidadania.

O maior retrocesso: tornar-se beduíno após a hijra..

O hadith profético que descreve o retorno à vida beduína (tribal) após a hijra como uma apostasia civilizacional – “O apóstata é aquele que volta a ser beduíno após a hijra” (1) – confirma que retroceder nessa ruptura civilizacional representada pela hijra é uma queda intelectual e social grave, considerada uma apostasia do caminho de reforma e renovação.

Migrantem onde estiverem..

Ainda assim, o Islã não ignorou a realidade. Houve exceções que permitiram, em alguns casos, o retorno ao deserto, como no hadith em que alguns emigrantes disseram: “Tememos apostatar após nossa hijra”. E o Profeta ﷺ respondeu:
“Vocês são emigrantes onde quer que estejam.”

Isso indica que, se os muçulmanos fossem capazes de manter seus valores de mudança e liberdade, não haveria impedimento. Mas a condição essencial permanece: os valores de transformação, liberdade e justiça devem governar, não o fanatismo ou a tirania tribal. Alguns ahadith indicam que emigrar mesmo sendo residente é uma prova maior e uma recompensa mais elevada.

  1. Hijra: uso da razão e planejamento estratégico

A hijra profética mostra claramente a aplicação prática do pensamento baseado nas leis divinas (sunan), enfatizando a importância das causas e do planejamento preciso. A hijra não se baseou apenas na revelação ou em milagres extraordinários, mas foi um modelo de planejamento cuidadoso e gestão sábia:

  • Escolha do momento ideal: a hijra não foi uma decisão aleatória, mas ocorreu quando as condições estavam prontas para receber a mensagem em Medina.
  • Companheiro de viagem fiel: a escolha de Abu Bakr Al-Siddiq (que Allah esteja satisfeito com ele) como companheiro de viagem não foi um acaso, mas uma decisão baseada em confiança e competência.
  • O percurso e as táticas precisas

O uso de um guia experiente no deserto, a designação de pessoas para tarefas específicas como disfarce, transmissão de notícias e fornecimento de alimentos – tudo isso reflete uma sabedoria profunda em planejamento e organização, ensinando-nos que a fé não exclui o uso das causas e dos meios.

  1. O método da hijra para a mudança abrangente: estratégia de uma nação

A hijra profética representa um verdadeiro roteiro para a mudança completa, cujos traços estratégicos podem ser resumidos nos seguintes pontos:

  1. Partir da consciência, não de reações impulsivas: a verdadeira mudança nasce de uma compreensão profunda da realidade e de uma visão clara do futuro, não apenas de reações emocionais.
  2. Combinar fé profunda com planejamento preciso: não há contradição entre confiar em Allah e utilizar as causas e o planejamento rigoroso.
  3. Superar as afiliações restritas e construir uma comunidade unida pela mensagem: a verdadeira unidade se constrói sobre valores comuns, não sobre laços de sangue ou tribo.
  4. Basear a mudança em valores, não na dominação: a força real está nos princípios e na moral, não no poder material ou na coerção.
  5. Gradualidade e paciência estratégica: mudanças verdadeiras exigem tempo e esforço, além de paciência e perseverança.
  6. Centralidade do ser humano no projeto: qualquer projeto de mudança que não coloque o ser humano no centro, servindo à sua dignidade e liberdade, está destinado ao fracasso.
  7. Clareza de direção e propósito: os objetivos devem ser claros e bem definidos para garantir a orientação correta rumo ao estabelecimento de uma nação que testemunhe a verdade diante da humanidade.
  8. Evidências da Sira: aplicando a filosofia na realidade..

Cada aspecto desse método está fundamentado em fortes evidências da vida do Profeta ﷺ, provando que esses princípios não são meras teorias, mas aplicações práticas:

  • A paciência do Profeta ﷺ em Meca antes da hijra: demonstra a partida de uma consciência profunda, sem desistir da mudança apesar das circunstâncias adversas.
  • O planejamento detalhado da hijra: exemplifica a união entre fé e gestão minuciosa, confiança em Allah com máxima precaução.
  • A fraternidade entre ansar e muhajirun: modelo supremo de superação das afiliações restritas, criando uma sociedade unida pela fé.
  • A Constituição de Medina e os fundamentos da convivência: evidência viva de que a mudança foi construída sobre valores humanos de justiça, liberdade e cidadania, independentemente de religião ou etnia.
  • Gradualidade na construção da sociedade: reflete a paciência estratégica, pois o Estado civil não foi construído em um dia, mas por meio de um processo gradual.
  • Preocupação do Profeta ﷺ com o ser humano: reconstruindo sua moral e crença, afirmando que o ser humano é o centro de qualquer projeto de renascimento.
  • Clareza no objetivo de estabelecer a Nação do Testemunho sobre a humanidade: essa ummah foi criada para ser testemunha da verdade e da justiça para toda a humanidade.

Hijra – um método de vida para todas as épocas..

A hijra profética não é apenas um evento histórico eterno, mas um método abrangente de transformação civilizacional, que combina força da crença, profundidade de valores, precisão no planejamento e seriedade na ação. Ela funda uma nação baseada em liberdade, justiça e cidadania igualitária, oferecendo um modelo prático vivo a ser seguido no enfrentamento da opressão e da tirania em qualquer tempo ou lugar.

Retornar ao fanatismo tribal após a construção de uma sociedade civil é uma perigosa apostasia civilizacional, como alertou o Profeta ﷺ. O verdadeiro migrante hoje é aquele que abandona tudo o que Allah proibiu – seja atraso, injustiça ou tirania – para erguer a bandeira da justiça, liberdade e cidadania.

Precisamos de uma migração coletiva de nossos fanatismos étnicos restritos e de nosso atraso intelectual para os amplos horizontes de um Estado civil moderno, onde a competência seja o critério, a lei seja o árbitro e a cidadania seja o fundamento.

Esta é uma tradução de um artigo em árabe publicado no site: Hikma Yamanya

Traduzido pela Irmã Khadija


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