A primeira parte da confissão de fé muçulmana (a Shahada) é a base para o conceito de Deus no Islã. O muçulmano testemunha que: “Não há divindade além de Deus” ou “não existe deus senão a (única) Divindade”.
A Escritura revelada do Islã, o Alcorão, é como um vasto comentário sobre essa simples declaração, extraindo dela todas as suas implicações para a vida e o pensamento humanos.
Essa concepção da Divindade é estritamente monoteísta e unitária. Só Deus possui existência absoluta, totalmente independente e autossuficiente. Tudo o que existe ou poderia existir, existe pela Sua vontade. Ele não tem “parceiro” nem na criação do universo nem na sua manutenção. Ele não é apenas a “Causa Primeira”, mas, em última análise, a única causa — e Ele mesmo não foi causado.
O Alcorão nos diz:
“Dize: Ele é Allah, Único, o absolutamente Autossuficiente; não gera e não foi gerado, e não há nada que se Lhe assemelhe.”
Diz-nos também:
“Quando Ele quer uma coisa, apenas diz a ela: ‘Sê!’, e ela é.”
Uma outra implicação da primeira parte da Shahada é que não pode haver poder, força ou agente nos céus ou na terra que seja independente de Deus. Tudo o que existe — e tudo o que acontece — está sujeito ao Seu controle; nada pode competir com Ele ou escapar de Seu domínio. Nada deixa de testemunhar Seu poder criador e Sua majestade.
O Alcorão afirma:
“Os sete céus, a terra e tudo o que neles há glorificam-No.”
E ainda:
“E não há nada que não proclame o Seu louvor, embora vós não compreendais o seu louvor.”
Na visão islâmica, é impossível para a mente humana formar uma concepção adequada de Deus em Seu ser eterno e absoluto. A criatura não pode compreender o Criador. Segundo o Alcorão:
“A visão (humana) não O abrange, mas Ele abrange toda visão.”
Mas o Islã não exige uma fé cega. O Alcorão nos fala muito sobre a natureza do Divino e O descreve por meio de vários atributos — chamados de “Os Nomes mais Belos” — que nos ajudam a conhecê-Lo.
O Alcorão nos diz:
“Allah! Não há divindade além Dele, o Vivente, o Sustentador eterno. O torpor não O toma, nem o sono. A Ele pertence tudo o que está nos céus e na terra. Quem pode interceder junto a Ele, exceto com Sua permissão? Ele conhece o que está diante deles e o que está atrás deles, e eles nada abrangem de Seu conhecimento, senão o que Ele quiser. Seu Trono estende-se sobre os céus e a terra, e preservá-los não O fatiga. E Ele é o Altíssimo, o Grandioso.”
Ele é Al-Ahad, “o Único”, a unidade absoluta. Isso contrasta nitidamente com a concepção cristã da Trindade. O Único não pode ser dividido, nem pode ser diminuído ou “humanizado” pela encarnação em qualquer forma criada. Deus não Se torna Sua própria criatura; na verdade, Ele não “se torna” nada — porque Ele é Deus.
O Alcorão também O descreve como Al-A‘la, “o Altíssimo”, totalmente transcendente em relação às Suas próprias criações, e, portanto, infinitamente além de tudo o que possamos tentar associar a Ele.
Ele é Al-‘Aziz, “o Todo-Poderoso”, e Al-Jabbar, pois não há ninguém nem nada que possa resistir ao Seu poder, o qual governa e regula toda a existência de acordo com uma medida pré-determinada.
Segue-se, portanto, que não há poder terreno que não derive Dele, nenhuma força ou virtude que não seja emprestada por Ele: ninguém pode nos ajudar exceto por Sua vontade, e ninguém pode nos prejudicar, a menos que Ele permita (e nesse caso, esse mal é uma provação a ser suportada com paciência).
Ele é chamado de Al-Haqq, “a Verdade” (ou “a Realidade”), e negá-Lo é estar distante da verdade em todos os níveis da experiência. A palavra árabe al-kafirun sugere um ato deliberado de “cobrir”; em outras palavras, aqueles que negam Aquele cujo nome é “a Verdade” cobriram sua própria compreensão com um véu opaco, de modo a não enxergar o que é, em última instância, autoevidente.
Ao fazer isso, eles fecharam a luz, pois outro de Seus nomes é An-Nur, “a Luz”. Estes são aqueles que o Alcorão descreve como “cegos”, pois:
“Allah é a Luz dos céus e da terra.”
No Islã, tudo deriva da natureza divina e, portanto, dos “nomes” pelos quais Deus Se deu a conhecer. E, se Ele não fosse “Luz”, não poderia haver luz em parte alguma — nem intelectual, nem física.
Nada escapa ao Seu conhecimento, nem mesmo os nossos pensamentos mais secretos, pois Ele é Al-‘Alīm, “o Onisciente”, que conhece tudo o que há nos céus e na terra, e Al-Khabīr, “o Onisciente de todos os detalhes”, de Quem nada permanece oculto. Ele é Al-Shahīd, “a Testemunha”, e, como tal, também é descrito como Al-Baṣīr, “o Onividente”, e As-Samī‘, “o Oniouvinte”. O Alcorão pergunta: “Quem é o Possuidor da audição e da visão?” e responde: “Allah!” Nós só vemos o que está diante dos nossos olhos, com o seu alcance muito limitado, mas a visão d’Ele não tem limite; nós só ouvimos sons que são muito altos ou muito próximos, mas Ele ouve tudo. O Alcorão diz: “E com Ele estão as chaves do Invisível; ninguém as conhece senão Ele. Ele sabe o que está na terra e no mar; nenhuma folha cai sem que Ele saiba, nem um grão no seio da escuridão da terra…”
Ele é Al-Awwal, “o Primeiro”, antes de Quem nada existia, e Al-Ākhir, “o Último”, depois de Quem nada haverá; mas Ele não está apenas no início e no fim do tempo, pois também é Az-Ẓāhir, “o Manifesto”, presente por trás de todas as cenas mutáveis que percebemos no mundo ao nosso redor, e Al-Bāṭin, “o Oculto”, pois é o Seu poder que move e dá força a tudo o que existe.
Ele não é apenas Al-Khāliq, “o Criador”, que concede a cada coisa distinta a luz da existência com o Seu comando “Sê!”, mas também é Al-Muṣawwir, “Aquele que modela”, moldando cada ser de acordo com a natureza que deseja que ele possua, pois tudo no mundo tem um propósito e é configurado para servi-lo.
Quando as criaturas foram trazidas à existência e moldadas de acordo com o propósito divino, não foram abandonadas nem deixadas por conta própria. Dois “Nomes” muito particulares ocupam o centro do conceito islâmico de Deus: Ar-Raḥmān e Ar-Raḥīm. Ambos derivam da palavra árabe Raḥma (Misericórdia), que está intimamente ligada à palavra para “útero” (raḥim), e, portanto, carrega consigo implicações de criatividade e fecundidade. Em um dos ditos inspirados em que Allah falou à humanidade por meio do Profeta Muḥammad ﷺ, somos informados de que a Sua Misericórdia precede a Sua Ira.
Existem diferentes opiniões quanto à distinção exata entre os Nomes Ar-Raḥmān e Ar-Raḥīm (que aparecem no início de todas as suratas do Alcorão, exceto uma). O primeiro é geralmente traduzido como “o Misericordioso” e o segundo como “o Compassivo”. Diz-se que Ar-Raḥmān descreve Allah em Sua natureza eterna, e que tudo é trazido à existência através do transbordar desta Misericórdia inata; enquanto Ar-Raḥīm se refere às bênçãos que Ele derrama sobre Suas criaturas. Seja qual for a tradução, o conceito essencial não deixa dúvidas: Allah é infinitamente Misericordioso, primeiro ao nos conceder a vida e os meios para usufruí-la, e depois ao cuidar de nós e satisfazer nossas necessidades legítimas.
Esse conceito é reforçado por outros Nomes divinos contidos no Alcorão. Allah é descrito como Al-Karīm, “o Generoso”, e Al-Wadūd, “o Cheio de Amor e Bondade”; Ele também é Ar-Razzāq, “o Provedor”, que nos sustenta tanto espiritual quanto fisicamente.
Apesar desse derramamento de Misericórdia, ainda assim nos desviamos, pois o Alcorão nos diz que o ser humano foi “criado fraco”, e a nossa situação pareceria desesperadora se Allah não fosse At-Tawwāb, “Aquele que volta sempre em perdão”, que nunca Se cansa de retornar às Suas criaturas quando estas voltam a Ele em arrependimento. Ele é Al-Ghaffār, “o Sempre Perdoador”, e Al-‘Afū, “o que Apaga (os pecados)”. Não importa o que a pessoa faça durante sua vida, sempre terá a oportunidade de buscar esse perdão enquanto tiver fôlego; mas essa oportunidade se perde quando a morte chega e, a partir daí, será julgada pelo que é ou pelo que fez de si mesma. Assim diz o Alcorão:
“Ó Meus servos que transgrediram contra si mesmos, não desesperem da Misericórdia de Allah. Em verdade, Allah perdoa todos os pecados. Ele é, de fato, o mais Perdoador, o mais Misericordioso. Retornem, pois, arrependidos ao vosso Senhor e submetam-se a Ele antes que vos chegue o castigo, e então não sereis socorridos.”
Mas “pecar” e “desviar-se” não teriam sentido claro se Allah não tivesse mostrado às Suas criaturas o caminho correto, o ṣirāṭ al-mustaqīm (“caminho reto”), como é chamado no Alcorão. Um dos Seus Nomes é Al-Hādī, “o Guia”. Temos a certeza de que Ele nunca deixou qualquer nação ou grupo de pessoas sem orientação; a cada um enviou um mensageiro para lhes transmitir uma mensagem de esperança e guia, e para instruí-los em como seguir o “caminho reto” que conduz ao Paraíso e, em última instância, ao Riḍwān, o “Agradar-se” ou “Satisfação” do próprio Allah. Essas mensagens divinas foram revestidas com a linguagem e os padrões de pensamento dos povos a quem se dirigiam, para que fossem claras e inequívocas; e os mensageiros, que foram os instrumentos dessa orientação, foram homens como outros homens, embora em todos os aspectos melhores que os demais.
Apesar de sua clareza, essas “mensagens” foram repetidas vezes rejeitadas por muitos daqueles a quem foram dirigidas, e é precisamente essa liberdade de rejeitar a verdade que distingue o ser humano das demais criaturas que compartilham a terra conosco — os animais, as aves e os peixes. Estes seguem por instinto o caminho traçado para eles, a lei da sua espécie, mas a humanidade possui a liberdade única de seguir o “caminho reto” consciente e deliberadamente, ou de afastar-se dele e seguir os ditames da própria vontade. Somente o ser humano recebeu uma mente capaz de compreender a verdade, uma vontade capaz de escolher o caminho da verdade e um coração inclinado, por sua própria natureza, a amar a verdade.
“Para cada um de vós instituímos uma lei e um caminho”, diz o Alcorão; “Se Allah quisesse, poderia ter-vos feito uma só nação; mas, para provar-vos naquilo que vos concedeu, (quis de outra forma). Então, competi em fazer o bem. A Allah todos retornareis, e Ele vos informará sobre aquilo em que divergíeis.” À luz deste e de outros versículos semelhantes, é perfeitamente possível para os muçulmanos aceitar a ideia de que as religiões pré-islâmicas foram, pelo menos, declarações parciais da Única Verdade, adaptadas ao tempo, ao lugar e às necessidades espirituais de diferentes povos.
O muçulmano, porém, acredita que a mensagem trazida pelo Profeta Muḥammad ﷺ completa a vasta estrutura da revelação e fornece uma síntese final, após a qual nada mais resta a ser acrescentado. O judaísmo e o cristianismo são ambas religiões “monoteístas”, mas os muçulmanos consideram que os judeus se apropriaram falsamente da Verdade universal, reivindicando-a como propriedade exclusiva de um único povo, enquanto os cristãos a distorceram por meio das doutrinas da Trindade e da Encarnação. Na visão islâmica, a “mensagem” transmitida por Muḥammad ﷺ não representava uma religião completamente nova, mas sim uma correção das falsificações e distorções que haviam ocorrido e, ao mesmo tempo, uma reafirmação intransigente da pura doutrina do Deus Único.
De acordo com o conceito islâmico, Allah exige de nós três coisas. A primeira é uma consciência constante d’Ele, mesmo no meio das nossas atividades mundanas. Essa consciência é expressa em duas palavras que aparecem repetidamente no Alcorão. Taqwā é comumente traduzida como “temor a Deus” ou “consciência de Deus”; ambas as traduções são aceitáveis, já que não podemos ser verdadeiramente “conscientes” d’Ele sem experimentar um profundo senso de reverência, que resulta em um saudável temor de desagradá-Lo ou de infringir Suas leis. A palavra árabe Dhikr, que significa tanto “menção” quanto “lembrança”, possui uma conotação mais devocional, e temos a certeza de que Allah está presente conosco quando O “lembramos” ou mencionamos o Seu Nome. Embora o Islã dê grande ênfase à transcendência divina, o Alcorão fala em muitas ocasiões da “proximidade” de Allah com Seus servos crentes: “Ele está convosco onde quer que estejais”, e “Nós estamos mais próximos dele (do homem) do que a sua veia jugular”. Lemos ainda no Alcorão que “é na lembrança (Dhikr) de Allah que os corações encontram paz”.
Em segundo lugar, Ele exige de nós que obedeçamos aos Seus mandamentos, que de forma alguma são arbitrários; quer saibamos ou não, eles são para o nosso próprio bem e, portanto, constituem um aspecto da Misericórdia divina. Seu propósito é manter um equilíbrio saudável tanto dentro da personalidade humana como na sociedade e, ao mesmo tempo, proporcionar uma estrutura estável para a vida humana. No Islã, Allah é o único Legislador. Nós não podemos legislar de forma eficaz para nós mesmos, já que nossas leis inevitavelmente seriam moldadas de acordo com nossos desejos imediatos. A partir dos mandamentos e proibições contidos no Alcorão e dos ensinamentos e do exemplo do Profeta Muḥammad ﷺ, deriva-se a Sharī‘ah, a Lei que rege todos os aspectos da vida do muçulmano na terra.
Por fim, como somos por natureza fracos e inclinados à autossatisfação, Allah exige de nós arrependimento sincero quando falhamos em corresponder ao que Ele requer de nós. Os muçulmanos reconhecem que essa fraqueza, por mais que a lamentemos, tem um aspecto positivo: se fôssemos fortes, seríamos tentados a nos ver como pequenos “deuses” autossuficientes, independentes de nosso Criador. Sendo fracos por natureza, logo percebemos que não podemos confiar nem em nós mesmos nem em outras pessoas, e isso nos obriga a voltar-nos para Aquele que o Alcorão descreve como Al-Wakīl, “o absolutamente Confiável”. Um dos ditos favoritos do Profeta Muḥammad ﷺ era: “Não há poder nem força senão com Allah.”
O desenrolar dos destinos humanos, obedientes ou desobedientes, acontece em um contexto significativo. Na visão islâmica, Allah não cria nada sem propósito. O Alcorão diz: “Não vês que Allah criou os céus e a terra com a Verdade?” Todo o universo está repleto — como um grande livro ilustrado — de “sinais” que testemunham o seu Criador e que nos recordam, se tivermos corações puros e olhos atentos, o Seu poder, a Sua majestade e a Sua beleza. O Alcorão nos diz: “Em verdade, nos céus e na terra há sinais para os crentes. E em vossa criação e em todas as criaturas que Ele espalhou pela terra há sinais para os que têm fé convicta. E na alternância da noite e do dia, e no sustento que Allah faz descer do céu, dando vida à terra depois de morta, e na direção dos ventos, há sinais para os que compreendem.”
Isso serve para enfatizar um elemento essencial no conceito islâmico de Allah. A nossa existência e a existência de todo o universo ao nosso redor são provas d’Ele, e isso é expresso de forma clara em outro trecho do Alcorão: “Mostrar-lhes-emos os Nossos sinais nos horizontes e em si mesmos, até que lhes fique evidente que Ele é a Verdade. Acaso não te basta que o teu Senhor seja Testemunha de todas as coisas? Então, ainda estão em dúvida acerca do encontro com o seu Senhor? Porventura Ele não abrange todas as coisas?”
Resumindo: o Deus do Islã é transcendente, o Criador e Legislador todo-poderoso e onisciente, embora ao mesmo tempo infinitamente misericordioso, generoso e perdoador. O homem, Sua criatura e Seu servo, em quem Ele insuflou algo do Seu espírito, está diante d’Ele sem intermediários ou intercessores, encontrando-O através da oração nesta breve vida terrena e encontrando-O face a face quando a vida terminar.
No Islã, Allah não Se encarna em nenhum ser humano, nem Se torna acessível por meio de ídolos ou imagens. Ele é o que Ele é, absoluto e eterno, e é assim que o muçulmano O adora.
Hasan abdu’l-Hakim (Gai Eaton)
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