Seitas cristãs primitivas que negaram a divindade de Cristo e a Sua crucificação


O discurso eclesiástico dominante apresenta uma narrativa coerente, afirmando que o cristianismo, desde o seu início, concordou em duas doutrinas centrais: a divindade de Cristo e a sua crucificação como redenção pela humanidade. Essas crenças são apresentadas como verdades evidentes, confirmadas unanimemente pelos discípulos e apóstolos, e transmitidas sem interrupção pelas gerações. Defensores dessa visão vão ainda mais longe, dizendo que negar uma dessas doutrinas significaria que Deus abandonou a humanidade ao erro e à escuridão por seis séculos, até que o Islã chegou com sua luz para restaurar a verdade.

Entretanto, essa narrativa aparentemente consistente esconde sérios problemas e distorções históricas. A evidência histórica e os textos sobreviventes revelam que os primeiros séculos do cristianismo não foram um campo de consenso, mas sim um terreno de debates e conflitos entre doutrinas divergentes: alguns viam Jesus como um profeta humano escolhido, outros negavam a crucificação, e outros rejeitavam Paulo e seus ensinamentos. A realidade não era uma frente unificada, mas um mosaico de crenças diversas, logo suprimidas com o triunfo da doutrina trinitária no Concílio de Niceia, apoiado pela autoridade do Império Romano.

Assim, o cristianismo que conhecemos hoje não é o fruto de uma revelação contínua e autêntica, mas o resultado de um processo político e teológico complexo, decidido pelos “vencedores”, que marginalizaram e apagaram outras seitas e crenças.

A grande maioria das denominações cristãs hoje (católicos, ortodoxos e protestantes) acreditam na divindade de Cristo e na crucificação com expiação. No entanto, ao longo da história — e até hoje — existiram grupos cristãos que se opuseram a essas doutrinas.

Nos Primeiros Séculos (séculos I–IV)

Várias seitas importantes negaram a divindade de Cristo ou a crucificação:

Ebionitas (Ebionites):


Um movimento judaico-cristão inicial que via Jesus como profeta humano e Messias enviado, rejeitando as doutrinas posteriores da divindade, especialmente a Trindade. Enfatizavam o monoteísmo do Antigo Testamento (por exemplo, Deuteronômio 6:4), mantinham a Lei, preferiam um evangelho de caráter judaico e rejeitavam as cartas de Paulo. Criam que Jesus era apenas um profeta enviado por Deus, não divino, e alguns negavam a crucificação.

Docetistas (Docetists):


Negavam a crucificação, dizendo que Jesus não foi realmente crucificado, mas apenas parecia ser (semelhante ao que está no Alcorão: “pareceu-lhes assim”). Defendiam que um ser divino não poderia sofrer ou morrer, e assim Jesus não teria assumido um corpo humano verdadeiro.

Gnósticos (Gnostics):


Alguns textos gnósticos, como O Segundo Tratado do Grande Seth, afirmam explicitamente que quem foi crucificado foi outro, não Jesus, ou que Jesus não morreu, mas apenas pareceu ter morrido — uma negação direta da crucificação.

Adocionistas (Adoptionists):


Acreditavam que Jesus era um homem escolhido por Deus e “adotado” como Seu Filho no batismo ou na ressurreição — ou seja, não tinha divindade eterna. Baseavam-se em textos que mostram a exaltação de Jesus em momento posterior (por exemplo, Atos 2:36).

Arianos (Arians):


Seguidores de Ário no século IV, negavam a divindade de Cristo, afirmando que ele era uma criatura exaltada. No entanto, não negavam a crucificação. Defendiam que “o Filho” foi criado e houve um tempo em que não existia, portanto não era igual ao Pai em essência. Citavam textos que mostravam a submissão de Jesus ao Pai (por exemplo, João 14:28). Foram condenados no Concílio de Niceia (325 d.C.).

Na Idade Média e depois (século XVI)

Surgiram movimentos reformistas unitários:

Unitarianismo e Socinianismo:


Correntes reformistas que negavam a Trindade e viam Jesus como mestre e Messias humano, não como Deus eterno. Seu argumento era que as Escrituras não declaram explicitamente a doutrina da Trindade e que o monoteísmo bíblico não a comporta. Permanecem presentes no Ocidente, considerando Jesus apenas um profeta ou mestre.


Na Era Moderna (séculos XIX–XX)

Novos grupos surgiram e ainda existem hoje:

Cristadelfianos (Christadelphians):


Uma seita bíblica unitária que rejeita a Trindade e vê Jesus como Filho de Deus, um homem enviado por Ele, não uma divindade eterna. Baseiam-se numa leitura literal e histórica das Escrituras que afirma a unidade absoluta do Pai.

Testemunhas de Jeová (Jehovah’s Witnesses):


Negam que Cristo seja Deus, considerando-o o Filho de Deus e uma criatura poderosa, mas ainda assim acreditam na crucificação. Defendem que Jesus não é o “Deus Todo-Poderoso”, mas “a primeira criação de Deus”, identificado com Miguel, o arcanjo, antes e depois de sua encarnação. Citam passagens como Colossenses 1:15 e João 14:28, e acreditam que ele morreu numa estaca, não numa cruz.

Iglesia ni Cristo (Filipinas):


Uma igreja moderna que nega a Trindade e afirma que Jesus foi um mensageiro humano de Deus, não o próprio Deus. Baseiam-se em textos que distinguem o Pai do Filho (por exemplo, João 17:3).

De fato, ao longo da história existiram seitas cristãs que não acreditavam na divindade de Cristo ou na crucificação. No entanto, as grandes igrejas (católica, ortodoxa e protestante) consideraram essas crenças como heresias e as excluíram do cristianismo oficial.


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